quarta-feira, janeiro 24, 2007

“É quando um chão de lama
se instala e nos comanda
que a injustiça avança
e a raiva se proclama
é quando D.Quixote
o peito acende e brama
irreverente a espada
imorredoura a chama
é quando os homens longe
repousam distraídos
que a cobra traiçoeira
lhes tapará os ouvidos
e a boca e o saber
e a vida tutelar
e o mais que for preciso
para não deixar pensar


mas sopra a barca o vento
doutra razão de ser
e rasga o mar e alcança
e rompe e quer viver
da ilha para que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto

que façam mil favores
em crónicas variadas
meus olhos e distâncias
nunca serão compradas
e comam futebol
e mostrai-vos ao mundo
e engulam três novelas
com talnão me deslumbro
ocupados de dia
com a bicha do guichet
entretidos à noite
com a santa mãe TV
matai-vos por um carro
ou para ter lantejoulas
que aqui na minha terra
cavalgo entre papoilas

mas sopra a barca o vento
doutra razão de ser
e rasga o mar e alcança
e rompe e quer viver
da ilha para que rumo
não há qualquer registo
mas diz que viver lá
é muito mais que isto…”

Música e letra de Pedro Barroso
fotografia de Kéa

ana marta fortuna

segunda-feira, janeiro 22, 2007

O mundo queria ser eu…
Eu queria que o mundo fosse sempre esta chamada telefónica a sorrir dentro dos meus ouvidos, dos meus olhos da minha alma.
Amanhã vou comer com as mãos abertas e a barriga cheia de fome como quem não sabe o sabor das coisas a arrepiar os cabelos. Vou acordar o dia…estender os meus braços na varanda e aquecer o meu corpo no chão banhado pelo sol.
Amanhã, mesmo sendo Inverno, vai ser um dia de Verão e eu vou estar estendida na praia o dia inteiro a ouvir as ondas rebentar nos meus pés.
Amanhã se me apetecer morrer, desejarei que seja sol todo o dia para que a minha morte seja sempre Verão, mesmo durante o Inverno…
Verão…mesmo no Inverno.

Ana Marta Fortuna
Fotografia de moumine

terça-feira, janeiro 16, 2007

Tom Waits - Take Me Home

À Maria Ermelinda
Ao Cunha


A manhã começou crua. Com sabor a morte e a perda. A morte poderia passar incólume mas a sensação de vida interrompida acompanhou-me nos vinte minutos que separam Figueira de Mato do Campo 24 de Agosto. Passa-se a ponte mas o frio permanece. Começar o dia com o peso da liberdade que se perdeu não é fácil.

Ela morreu de cancro de mama. Ele está preso. Ela era a mulher forte que morou, durante anos, na casa ao lado. Ele, o mecânico da rua que me enchia os pneus da bicicleta. A morte era um desfecho esperado, as grades da prisão não. O peso no estômago é pela liberdade que se perde. Há dois filhos que deixaram de abraçar a mãe, há uma filha que esquece o calor do abraço forte do pai. Há uma rua que ficou mais triste, há pessoas votadas ao abandono.

Há quem vá chorar durante todo o dia de hoje, há quem deixará de abraçar a filha e levá-la de manhã à escola. Perdeu-se uma mãe, interrompe-se um pai.
Eu, e a irrelevância da minha dor, ficam com aqueles que perdem. Pelos dois filhos que perderam a mãe, por aquele que perdeu a liberdade. É difícil acreditar em postulados como 'nada se perde, tudo se transforma'. A brutalidade da dor não se reconforta com as certezas da ciência.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

No telhado...




















Fotografia de Zabaa

Quando a única coisa que nos arrebata é o homem que subiu ao telhado para fumar um cigarro fica-se com a sensação que o amor é uma invenção de quem nunca arriscou olhar lá de cima. É o cenário perfeito para observar os passos dos rostos anónimos e, quem sabe, se não será a distância ideal para que não seja mais possível distinguir-te por entre a multidão.

domingo, janeiro 07, 2007

Para o Manuel...

Todos estamos determinados pelo facto de nascermos humanos e, consequentemente, pela tarefa interminável de ter de escolher constantemente. Não devemos confiar em alguém que nos salve, mas conhecer bem o facto de que as escolhas errradas nos tornam incapazes de nos salvarmos.
ERICH FROMM, O coração do homem
fotografia de Petrova

Da janela chegava uma chuva miudinha e um cinzento frio que mantinha quente a memória de que era Domingo. Só os domingos trazem notícias assim, só os amigos trazem esperança igual, junto com uma já saudade por uma distância futura, tão próxima.
Do outro lado vinha uma frase: “Tive uma proposta, Ana…Segunda-feira tenho que responder a ela…implica sobreviver em Lisboa”
Subitamente as coisas crescem e o mundo torna-se enorme, engolindo tudo à nossa volta. Tudo parece insignificante perante a imagem da distância física…O Manuel longe é uma novidade…para todos.
Mas Lisboa será só 300 km e o Manuel é tão grande que lhe basta suspirar para que esses quilómetros sejam desfeitos com as duas mãos num colectivo de saudades…”Inclino-me para ir, anita”.
Vamos todos contigo, sempre, pequeninos dentro do bolso do teu casaco, para qualquer lado…vamos sempre!
Quando cresço percebo com facilidade que a amizade é o único amor honesto. Sinto remorsos pelas conversas que não tivemos, pelos jantares que não foram combinados, por uma estranheza nos abraços…queria ter conversado mais, abraçado mais, chorado mais…
A ideia da ausência traz-me memórias do que não se fez. A escolha meu terno amigo é mais do que acertada…a viagem é rápida, o carinho esse demora-se pelo tempo, dança calmo pelos dias…Ficaremos bem se tu também ficares…E agora por ti, vamos dançar, sorrir muito e cantar muito alto, como fazem as crianças, para que os anjos as oiçam…Para ti…para o slint e para a andorinha, pais e irmã asas para protegerem o vosso sono e darem esperança aos vossos sonhos.

Ana Marta Fortuna


"São tão difíceis os encontros, mais difícil a separação.
O vento leste perdeu a força, murcharam todas as flores.
Na Primavera , os bichos-da-seda tecem, até morrer, os fios do coração;
As lágrimas da vela não secam até o pavio ser cinza.
De manhã vendo-se ao espelho: ficará grisalho o cabelo?
Repetindo um poema durante a noite, sentirá o arrepio do luar?
Não é longe, daqui até ao Rio Escuro
Pássaro Azul, depressa, vigia-me a estrada."
Li Shang-Yin
fotografia de Gonçalo Franco
dimensaooculta