quinta-feira, novembro 30, 2006

Estação



















"Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te vou perdendo a noção desta subtileza. Aqui chegado até eu venho ver se me apareço e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez
vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça"
Mário Cesariny
Fotografia de Rosalina Afonso

dimensaooculta



Há uma irrealidade que se transforma em matéria…um rosto que se torna irreconhecível à força de tanto o olhar, uma pessoa que se deixa sem fronteiras à força de tanto querer acreditar.
Ontem era velha…tão velha que me doía o corpo só de pensar em levantar, as mãos de as querer apertar, os braços de os querer cheios. Hoje sou uma criança…tão pequenina que me dói a alma por tudo o que ainda tenho para viver, por todas as mãos que quererei minhas, por todos os abraços que me recusarão, por toda a verdade que nunca chegará.
Pensei que a verdade resolvia os males da humanidade…Aprendi que a verdade não é única porque cada um tem a sua, conforme as suas conveniências…lamento…hoje porque sou criança e porque ontem fui velhinha, tenho o direito de acreditar, que não há nada em que acreditar…E o que mais julgava acreditar desfez-se em pó. A verdade é que a realidade não existe, a verdade é que os muros não existem, a verdade é que as palavras não se dizem, a verdade é que os olhos não se escondem, a verdade é que as mãos não se dão e os abraços não se querem cheios…
A verdade é que estamos sozinhos…sempre que queremos acreditar que a verdade parte do útero e não da voz. Todas as coisas parecem irreconhecíveis quando queremos acreditar que toda a verdade vale a pena.
Hoje lembrei-me que quando era criança o dia começava cedo, não havia medo de acordar, não havia medo de esfolar os joelhos na eira da minha casa, ou de subir ás videiras e cair a 3 metros do chão. De subir ao telhado enorme da casa da minha avó e só sentir o medo pelo sermão da mãe e do castigo que se adivinhava mal se dava o primeiro passo em direcção a esse telhado. Lembro de me zangar com o Tiago e não ter medo de lhe dizer o porque…de um dia não querer ir lanchar a casa da Isabel porque me lera o diário sem eu saber…O Tiago pediu desculpa e nessa mesma tarde brincávamos juntos outra vez. A Isabel deixou ler-me o diário dela e continuamos a lanchar juntas. Lembro-me de um dia ter arrancado uma unha ao Tiago, numa estúpida brincadeira dos cozinheiros. Ele bateu-me…Nessa tarde foi ao hospital. No dia seguinte, estava em minha casa...Olhamo-nos…eu chorei…ele sorriu.
Não eram precisas palavras…bastava saber que o mundo era o espaço daquele dia, e que as tardes e os amigos eram tudo o que tínhamos. O mundo não acabava de um dia para o outro, mas os dias eram sempre novos, havia sempre a oportunidade para ser melhor, para esquecer e começar pelo sorriso depois da zanga.
As crianças acreditam que o homem faz chuva…as crianças compreendem a dimensão da arte e da verdade, mais do que qualquer um de nós, mais do qualquer pseudo-intelectualismo, fechado em tertúlias para os amigos.
Tenho saudades de sentir o que sentia quando era criança…de sentir que a dor se resolvia com um abraço e as zangas eram princípios de alguma coisa melhor e nunca o fim.
Hoje…na tarde submersa em trânsito chorei pelo tempo que me falta viver, sem sentir a verdade das coisas como o fazia quando era criança.
Chorei porque já ninguém acredita. Porque hoje andava uma mulher quase nua na rua a falar sozinha, porque há alguém que não consegue dormir, porque há alguém que ama e não diz, porque há alguém que sofre por um mal entendido, porque há alguém que foi mal interpretado, porque há alguém que não tem onde dormir, alguém que não tem o que comer, alguém que se sente sozinho, alguém que reprovou num exame, alguém…Em camadas…pesando umas em cima das outras, sinto em camadas...Tanto que não me sinto!

dimensaooculta

terça-feira, novembro 28, 2006

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny
Nobilíssima Visão (1945-1946)

dimensaooculta

quarta-feira, novembro 22, 2006

Johnny Cash - Hurt

17h30, chove lá fora, a noite que cai, o frio que se sente. Johnny Cash é a voz da dor. Ouve-se 'Hurt' com a mesma verdade com que se sofre, sente-se cada palavra como que um último sopro de vida. Há dias em que os cenários enegrecidos são a única coisa que nos move. A ele, que a arte degenerativa da vida tomou, resta agora o registo da voz. Aqui acrescentam-se as palavras e a imagem.


'Hurt'

I hurt myself today
to see if I still feel
I focus on the pain
the only thing that's real
the needle tears a hole
the old familiar sting
try to kill it all away
but I remember everything
what have I become?
my sweetest friend
everyone I know
goes away in the end
and you could have it all
my empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

I wear this crown of thorns
upon my liar's chair
full of broken thoughts
I cannot repair
beneath the stains of time
the feelings disappear
you are someone else
I am still right here

what have I become?
my sweetest friend
everyone I know
goes away in the end
and you could have it all
my empire of dirt

I will let you down
I will make you hurt

if I could start again
a million miles away
I would keep myself
I would find a way

Memórias de um país na rua

"Um partido é um associação
de interesses, onde os chefes
proclamam: unir, unir!
Mas, nem por isso, ele
deixa de ser partido..."


"Portugal é o país onde
todo o homem é livre
de dizer o que pensa!
Porque ninguém lhe
liga nenhuma..."


"Se Deus existe
porque é que não
foi votar?"


"O meu querido S. João
Este ano em Portugal
Se tu fosses capitão
Eras feito general"

(quadra popular portuense)


"Abaixo os telhados, a
a chuva é do povo!"


"Queremos sair
da casca!
(os pintainhos em auto-gestão)"



in O Livrinho Vermelho do Galo de Barcelos, Ex-citações de Mau de Zé y Chunga


E a rua continua a ser a última expressão de liberdade do homem preso pelas circunstâncias do poder.

terça-feira, novembro 14, 2006

Teatradas...a continuação!

Estão todos convidados para a estreia Internacional da experiência laboratorial"A morte dos Reis" no Clube Os Fenianos (junto à câmara do Porto), dias 17 e 18 (Novembro) pelas 21:30. A concepção cénica e interpretação cabe a Pedro Estorninho. Pedro Ferreira na luz e no som.
A Teatrada continua, apesar de todas as adversidades!!
Apareçam...

domingo, novembro 12, 2006

Problema de Expressão (Clã)


Sexta feira "alguém" me perguntou como fazer...pensei o fim-de-semana inteiro. Sem querer correr o risco de aborrecer "alguém" com mais uma chamada telefónica, deixo aqui uma sugestão a esse "alguém"...
E se pensares em linguagem gestual???
Há coisas que devem ser ditas, independentemente de todos os problemas de expressão.


dimensaooculta

terça-feira, novembro 07, 2006

Al(nin)guém



Hope there's someone
Who'll take care of me
When I die, will I go

Hope there's someone
Who'll set my heart free
Nice to hold when I'm tired

(Antony and the Johsons - Hope There's Someone)

É um desejo até demasiado comum...esperar que haja alguém. Que abrace, que dê a mão, que esboce uma piada em dias de chuva, que segure o pé para saltarmos a cerca. Que te olhe assim.

Esperar que haja alguém é, ao mesmo tempo, deixar de esperar muito de nós próprios. É deixar de ter vontade para pular a cerca, é deixar de dar a mão ao outro abandonado na entrada fria do condomínio, é deixar de aguentar o frio da chuva sozinho....só. É deixar de exigir a nós próprios a força para viver todos os dias. É, por vezes, vivermos mais pelo outro que por nós.

É também o sorriso que falta.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Frio

Porque é que faz tanto frio, mesmo quando a àgua que cai do chuveiro te queima a pele?

dimensaooculta