Após os insistentes reparos da minha ausência pelo blog resolvi deixar-vos este texto escrito antes do Cavaco ganhar e, certamente, muito antes da tarde dos apertos de mão.
Porque quando já não há mais nada que nos reste para escrever, fala-se da política que, apesar dos discursos feitos que nos cercam, é um acto iminentemente humano.
A luz humedecida dos candeeiros da Rua de Santa Catarina mostrava a calçada vazia. Às dez da noite a artéria comercial do Porto estava só, fria. Quase impenetrável. Sem pessoas mas com os restos de um dia de campanha. Perfilhadas na calçada ou desalinhadas nos bancos de ocasião agitavam-se as cores nacionais. De repente, por entre um vento mais forte que insistia em se levantar, a noite deu lugar à luz do dia. Sem aviso. Uma tarde quase imposta que se insinuou por entre os papéis que fazem a história de uma campanha. Palavras vãs e associações feitas que fazem o discurso político. Horas antes, o verde e o vermelho dominavam a rua. Mal saiu do seu Renault Laguna, que diariamente o transporta, Jerónimo de Sousa abraçou a multidão. Uma recepção entusiasta brindada com os sons da campanha, beijos e discursos de ocasião. Um dia típico de presidenciais. Enquanto Jerónimo de Sousa fazia as delícias das peixeiras do Bolhão, três empregadas da mercearia Europa, em Monção, discutiam os atributos estéticos dos candidatos a Belém. Em Seia, lançou-se o aviso: "O cavaquismo vem aí com toda a força". No Fundão a resposta não tardou. "É tempo de nos unirmos mais", lança Cavaco, em tom imperial. Mais a sul, Francisco Louçã não resiste e responde. "Cavaco é o Sr. instabilidade". Frases que ficam de um dia de campanha, que animam telejornais e lançam primeiras páginas.
A simplicidade tem sempre a vantagem de se apresentar quase organicamente. Por entre as reais exigências e competências de um Presidente da República, para as campanhas políticas já pouco interessa quem concorre ou mesmo para que cargo. Interessam, isso sim, jogos de eficácia e malabarismos de imagem. A mobilização social tem já hoje muito pouco de apoio popular. Corre-se às câmaras, aos brindes. Corre-se para os outros. Para quem hoje foge das pessoas, desconhece os vizinhos e se recusa a comentar os resultados do campeonato com o empregado do café o banho de multidão tem a magia da comunhão, tem o sabor da comunidade, da pertença que quase diariamente se nega.
Ironicamente, a eficácia das previsões e das construções de interesses muitas vezes esquece o simples factor humano. Depois dos narizes de palhaço, nas legislativas, depois dos balões de banda desenhada, nas autárquicas, surgem candidatos presidenciais com imponentes bigodes ao estilo oitocentista.
Para os criativos das agência de publicidade, "todos os candidatos melhoraram com os bigodes". Numa campanha pontilhada por cartazes sem interesse ou criatividade, os bigodes revelam a fina ironia que ainda se esconde por detrás de projectos elaborados quase maquinalmente, como é o caso de uma campanha política. São os toques que ainda revelam que entre a política e o homem há uma ligação histórica, quase genética.
Apesar da paisagem de feira popular que se pinta quase diariamente, há a palavra, as ideias e os projectos que nos unem. A política nasceu do povo ou, pelo menos, da ideia da necessidade dele. Hoje só a necessidade persiste. É a necessidade do povo enquanto legitimação do poder. O poder enquanto seviço público esconde-se. Mas a festa continua, porque a política vive da euforia da multidão e renega, à partida, as dúvidas e indecisões de quem espreita da janela. Indefinições de um sistema de indivíduos em que só a massa existe. Contudo, a acção individual persiste e deixou uma singela marca nos cartazes.
É de estranhar quando as coincidências vão muito para além do papel. Foi, aliás, o rolar dos panfletos da tarde, por entre o frio da noite, que lançou novamente a penumbra. Ao mesmo tempo, pressentem-se murmúrios para os lados do coliseu. Lá dentro, centenas de militantes ouviam mais um candidato presidencial. Palavras e atitudes encomendadas, respostas prefiguradas. Pelo meio aplausos e vivas. Cá fora, apesar do calor da campanha, só o frio.
quarta-feira, março 15, 2006
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1 comentário:
"Enquanto Jerónimo de Sousa fazia as delícias das peixeiras do Bolhão, três empregadas da mercearia Europa, em Monção, discutiam os atributos estéticos dos candidatos a Belém."
QUAIS atributos estéticos?!!!!
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