quarta-feira, março 11, 2009
Para ti (e com muito Cuidadinho...)
Li hoje a palavra "desabitada" para definir este pequeno espaço onde escrevo e me deito por vezes.
Tenho-me deixado estendida ao comprido, a ouvir o suave rumor das ondas e já não te atiro palavras ora furiosas, ora tão ponderadas como uma lista de compras.
Magoa-me este abandono, porque todos os dias sinto tanta coisa para te colorir. Às vezes meros 'flashes', outras parágrafos inteiros de ideias desconexas. Sento-me na cama ao som da aparelhagem antiga do Manel, a sentir o vento que sopra lá de fora, da minha nova rua, e quero deixar-te, Cuidadinho, algumas das histórias que tenho escrito para cerca de 20 meros rostos. Quero impregná-las em ti , para que as minhas palavras sejam também tuas.
(as ausências não são abandonos, são tão simplesmente férias grandes)
Este texto partiu de uma proposta concreta: "HUMILDADE"
As páginas contorciam-se ao ritmo da ondulação maquinal dos seus dedos. A respiração era pausada, a sombra movia-se de soslaio, o olhar, esse, impenetrável. Teciam-se algumas considerações acerca dos seus gostos literários, mas nunca se chegou sequer perto de um perfil psicológico. Houve quem garantisse que o funcionalismo público caído em desgraça de Gógol lhe assentava que nem uma luva. Outras vozes erguiam um espírito mais incauto, preso ao realismo mágico sul-americano. “Humilde: adjectivo de quem tem ou aparenta humildade; modesto; simples; obscuro; pobre; medíocre; respeitoso; acatador. Substantivo feminino da virtude que nos dá o sentimento da nossa fraqueza; modéstia; submissão ou inferioridade”. O dicionário vende certezas. Um momento passa a ser o tempo necessário para se dar significado. Não se complica, não se fazem avaliações subjectivas. Consulta-se. O homem, à luz do dicionário, cumpre-se como um exercício matemático. De palavras somadas, adjectivos subtraídos e desejos divididos em múltiplas interjeições. A ele agradava-lhe esta leitura alfanumérica. Subtrai o remorso na hora de premir o gatilho. Ainda hoje recorda a sua primeira vez, que dispensou qualquer ritual iniciático. O elevador seguia lento. 7h45. Edifício em auto-gestão e a neura impermeável dos dias de névoa densa. A vítima entrou no segundo piso. Um homenzinho de ar burlesco, acentuado pelo chapéu de coco enfiado entre as orelhas sobredimensionadas. Repugnante. -“Desculpe, vai para que piso?” Pergunta perfeitamente dispensável. De onde vem esta necessidade de perdão sem dolo? Não houve sequer tempo de lhe sentir o cheiro gasto do sobretudo castanho caído em desuso. O revólver disparou uma bala certeira. Ninguém ouviu. A uma primeira morte abafada segue-se um exemplo destemido. O gatilho não tardou a manifestar-se. Dias depois, numa terça-feira agitada a tresandar a véspera de ano novo, a ira embarcou no 501. As feições acentuadas e a robustez impressa no olhar desvaneciam-se sempre que entrava um “espécime de fato e gravata”. Estaria porventura perto de completar meio século, mas as ruas contraiam-se na ânsia de ceder o lugar perante a mais ligeira possibilidade de grau académico. A delegação de lugar sentado assemelhava-se a um rito de obediência medieval. Irritado, saiu na sua paragem e abandonou o rasto de gorduras saturadas e colesterol que desfilava entre os passageiros, substância completamente indiferente ao preço e à qualidade dos respectivos curtumes. Seguiram-se o caça multas da rua do Rosário, a caixa de supermercado crente na bondade da Nossa Senhora das Dores… Hoje, antes de entrar em casa, não suportou os lamentos quotidianos da dona do quiosque. O sangue colou-se aos tumultos na Grécia das primeiras páginas. À ebulição popular, o ‘serial killer’ de almas humildes responde com o desígnio da vontade. Riscar uma só palavra do dicionário, abafar o adjectivo e degolar o substantivo. A humildade é mero equívoco de pontuação.
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1 comentário:
Um belo texto, Mariana.
Pedro
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