quinta-feira, março 19, 2009

A Luxúria


O denominado Atelier de Escrita chegou ao fim.
A mim soube-me a elixir anti preguiça. Houve palavras novas que me brotaram das mãos, novos sentidos para vocábulos outrora desconexos, houve descoberta. Ficou no fim a vontade. De mais. Escrever mais, ler mais, sonhar acordado em dias de sol. Valeu pela provocação do mentor à força.

Agora que a noite cai avassaladora, olho para o sucedido há poucas horas atrás e um sentimento de estranheza continua a percorrer-me o corpo. Já me despedi muitas vezes. Nunca de uma forma tão brutal. Foi um adeus. Definitivo. Com tantas palavras escritas ao longos dos encontros de quarta-feira, jamais pensei que tudo terminaria num trágico final de quinquilharia alarve. Eventualmente, o material desta noite poderá resultar numa bela comédia negra. Para mim fica o sabor a derrota. Como a História nos conta, é-se livre no papel. De facto, a liberdade acaba mal a boca se desprende. Uma liberdade que, só por esta noite, teve um valor concreto. Preço de tabela: 30 euros por cabeça.

Saí desapontada. Há tantos encontros que se lêem nos livros, quando cá fora nos perdemos quase sempre em esquinas bem iluminadas. Fico triste por me ter sido reservado o papel de vilão num enredo que nunca foi meu. Dói-me pensar que a vida é pouco mais que isto. Não querer voltar a um sítio que nos deixou agitar as asas, só porque aquela deixou de ser terra onde me queira demorar.

quarta-feira, março 11, 2009

Para ti (e com muito Cuidadinho...)


Li hoje a palavra "desabitada" para definir este pequeno espaço onde escrevo e me deito por vezes.
Tenho-me deixado estendida ao comprido, a ouvir o suave rumor das ondas e já não te atiro palavras ora furiosas, ora tão ponderadas como uma lista de compras.

Magoa-me este abandono, porque todos os dias sinto tanta coisa para te colorir. Às vezes meros 'flashes', outras parágrafos inteiros de ideias desconexas. Sento-me na cama ao som da aparelhagem antiga do Manel, a sentir o vento que sopra lá de fora, da minha nova rua, e quero deixar-te, Cuidadinho, algumas das histórias que tenho escrito para cerca de 20 meros rostos. Quero impregná-las em ti , para que as minhas palavras sejam também tuas.

(as ausências não são abandonos, são tão simplesmente férias grandes)

Este texto partiu de uma proposta concreta: "HUMILDADE"
As páginas contorciam-se ao ritmo da ondulação maquinal dos seus dedos. A respiração era pausada, a sombra movia-se de soslaio, o olhar, esse, impenetrável. Teciam-se algumas considerações acerca dos seus gostos literários, mas nunca se chegou sequer perto de um perfil psicológico. Houve quem garantisse que o funcionalismo público caído em desgraça de Gógol lhe assentava que nem uma luva. Outras vozes erguiam um espírito mais incauto, preso ao realismo mágico sul-americano. “Humilde: adjectivo de quem tem ou aparenta humildade; modesto; simples; obscuro; pobre; medíocre; respeitoso; acatador. Substantivo feminino da virtude que nos dá o sentimento da nossa fraqueza; modéstia; submissão ou inferioridade”. O dicionário vende certezas. Um momento passa a ser o tempo necessário para se dar significado. Não se complica, não se fazem avaliações subjectivas. Consulta-se. O homem, à luz do dicionário, cumpre-se como um exercício matemático. De palavras somadas, adjectivos subtraídos e desejos divididos em múltiplas interjeições. A ele agradava-lhe esta leitura alfanumérica. Subtrai o remorso na hora de premir o gatilho. Ainda hoje recorda a sua primeira vez, que dispensou qualquer ritual iniciático. O elevador seguia lento. 7h45. Edifício em auto-gestão e a neura impermeável dos dias de névoa densa. A vítima entrou no segundo piso. Um homenzinho de ar burlesco, acentuado pelo chapéu de coco enfiado entre as orelhas sobredimensionadas. Repugnante. -“Desculpe, vai para que piso?” Pergunta perfeitamente dispensável. De onde vem esta necessidade de perdão sem dolo? Não houve sequer tempo de lhe sentir o cheiro gasto do sobretudo castanho caído em desuso. O revólver disparou uma bala certeira. Ninguém ouviu. A uma primeira morte abafada segue-se um exemplo destemido. O gatilho não tardou a manifestar-se. Dias depois, numa terça-feira agitada a tresandar a véspera de ano novo, a ira embarcou no 501. As feições acentuadas e a robustez impressa no olhar desvaneciam-se sempre que entrava um “espécime de fato e gravata”. Estaria porventura perto de completar meio século, mas as ruas contraiam-se na ânsia de ceder o lugar perante a mais ligeira possibilidade de grau académico. A delegação de lugar sentado assemelhava-se a um rito de obediência medieval. Irritado, saiu na sua paragem e abandonou o rasto de gorduras saturadas e colesterol que desfilava entre os passageiros, substância completamente indiferente ao preço e à qualidade dos respectivos curtumes. Seguiram-se o caça multas da rua do Rosário, a caixa de supermercado crente na bondade da Nossa Senhora das Dores… Hoje, antes de entrar em casa, não suportou os lamentos quotidianos da dona do quiosque. O sangue colou-se aos tumultos na Grécia das primeiras páginas. À ebulição popular, o ‘serial killer’ de almas humildes responde com o desígnio da vontade. Riscar uma só palavra do dicionário, abafar o adjectivo e degolar o substantivo. A humildade é mero equívoco de pontuação.