Há uma irrealidade que se transforma em matéria…um rosto que se torna irreconhecível à força de tanto o olhar, uma pessoa que se deixa sem fronteiras à força de tanto querer acreditar.
Ontem era velha…tão velha que me doía o corpo só de pensar em levantar, as mãos de as querer apertar, os braços de os querer cheios. Hoje sou uma criança…tão pequenina que me dói a alma por tudo o que ainda tenho para viver, por todas as mãos que quererei minhas, por todos os abraços que me recusarão, por toda a verdade que nunca chegará.
Pensei que a verdade resolvia os males da humanidade…Aprendi que a verdade não é única porque cada um tem a sua, conforme as suas conveniências…lamento…hoje porque sou criança e porque ontem fui velhinha, tenho o direito de acreditar, que não há nada em que acreditar…E o que mais julgava acreditar desfez-se em pó. A verdade é que a realidade não existe, a verdade é que os muros não existem, a verdade é que as palavras não se dizem, a verdade é que os olhos não se escondem, a verdade é que as mãos não se dão e os abraços não se querem cheios…
A verdade é que estamos sozinhos…sempre que queremos acreditar que a verdade parte do útero e não da voz. Todas as coisas parecem irreconhecíveis quando queremos acreditar que toda a verdade vale a pena.
Hoje lembrei-me que quando era criança o dia começava cedo, não havia medo de acordar, não havia medo de esfolar os joelhos na eira da minha casa, ou de subir ás videiras e cair a 3 metros do chão. De subir ao telhado enorme da casa da minha avó e só sentir o medo pelo sermão da mãe e do castigo que se adivinhava mal se dava o primeiro passo em direcção a esse telhado. Lembro de me zangar com o Tiago e não ter medo de lhe dizer o porque…de um dia não querer ir lanchar a casa da Isabel porque me lera o diário sem eu saber…O Tiago pediu desculpa e nessa mesma tarde brincávamos juntos outra vez. A Isabel deixou ler-me o diário dela e continuamos a lanchar juntas. Lembro-me de um dia ter arrancado uma unha ao Tiago, numa estúpida brincadeira dos cozinheiros. Ele bateu-me…Nessa tarde foi ao hospital. No dia seguinte, estava em minha casa...Olhamo-nos…eu chorei…ele sorriu.
Não eram precisas palavras…bastava saber que o mundo era o espaço daquele dia, e que as tardes e os amigos eram tudo o que tínhamos. O mundo não acabava de um dia para o outro, mas os dias eram sempre novos, havia sempre a oportunidade para ser melhor, para esquecer e começar pelo sorriso depois da zanga.
As crianças acreditam que o homem faz chuva…as crianças compreendem a dimensão da arte e da verdade, mais do que qualquer um de nós, mais do qualquer pseudo-intelectualismo, fechado em tertúlias para os amigos.
Tenho saudades de sentir o que sentia quando era criança…de sentir que a dor se resolvia com um abraço e as zangas eram princípios de alguma coisa melhor e nunca o fim.
Hoje…na tarde submersa em trânsito chorei pelo tempo que me falta viver, sem sentir a verdade das coisas como o fazia quando era criança.
Chorei porque já ninguém acredita. Porque hoje andava uma mulher quase nua na rua a falar sozinha, porque há alguém que não consegue dormir, porque há alguém que ama e não diz, porque há alguém que sofre por um mal entendido, porque há alguém que foi mal interpretado, porque há alguém que não tem onde dormir, alguém que não tem o que comer, alguém que se sente sozinho, alguém que reprovou num exame, alguém…Em camadas…pesando umas em cima das outras, sinto em camadas...Tanto que não me sinto!
dimensaooculta